domingo, 25 de março de 2012

Lorca


Os Encontros de Um Caracol Aventureiro

Há doçura infantil na manhã quieta.As árvores estendem 
seus braços à terra.Um bafo tremente
cobre as sementeiras,e as aranhas estendem 
seus caminhos de seda -raias no cristal limpo do ar.
Na alameda um manancial recita seu canto entre as ervas.
E o caracol, pacífico burguês da vereda,
ignorado e humilde,a paisagem contempla.
A divina quietude da Natureza deu-lhe valor e fé, 
e esquecendo-se das penas de seu lar, desejou
ver o fim da senda.

Pôs-se a andar e internou-se
em um bosque de heras
e de urtigas. No meio havia duas rãs velhas 
que tomavam sol,entediadas e enfermas.

'Esses cantos modernos' -murmurava uma delas-'são inúteis.'
 'Todos,amiga' -lhe responde a outra rã, que estava
ferida e quase cega. -'Quando jovem acreditava
que se finalmente Deus ouvisse o nosso canto, teria
compaixão. E minha ciência,pois já vivi muito,
faz com que não o creia.
Eu já não canto mais...'

As duas rãs se queixam,
pedindo uma esmola a uma rãzinha nova
que passa presumida apartando as ervas.

Ante o bosque sombrio o caracol se aterra.
Quer gritar. Não pode. As rãs aproximam-se dele.
'É uma mariposa?' -diz a quase cega. 
'Tem dois cornichos' - a outra rã responde.
'É o caracol. Vens, caracol, de outras terras?'
'Venho da minha casa e quero
bem depressa voltar para ela.'
'É um bicho mui covarde' - exclama a rã cega.
'Não cantas nunca?' 'Não canto', diz o caracol.
 'Nem rezas?' 'Tampouco - nunca aprendi.'
'Nem crês na vida eterna?' 'O que é isso?'
'É viver sempre dentro da água mais serena,
perto de uma terra florida que rico manjar sustenta.'

'Quando menino me disse um dia minha pobre avó 
que, ao morrer, eu iria para junto das folhas mais tenras 
das árvores mais altas.' 
'Uma herege era tua avó.
A verdade te dizemos, nós. 
Acreditarás nela' - dizem as rãs furiosas.
'Por que quis ver a senda?' -geme o caracol.
 'Sim, creio para sempre na vida eterna que [me] predicais...'

As rãs,muito pensativas, afastam-se,e o caracol, assustado,
vai-se perdendo na mata.
As duas rãs mendigas como esfinges ficam.
Uma delas pergunta:'Crês tu na vida eterna?' 
'Eu não' - diz mui triste a rã ferida e cega.
'Por que dissemos, então,ao caracol que cresse?'
'Porque... Não sei por quê' - diz a rã cega.
'Encho-me de emoção ao sentir a firmeza 
com que chamam meus filhos a Deus lá da acéquia...'

O pobre caracol volta atrás. Na senda um silêncio ondulado emana* da alameda. 
Com um grupo de formigas encarnadas se encontra. 
Vão muito alvoroçadas, arrastando atrás de si outra formiga que tem  
truncadas as antenas. O caracol exclama: 
'Formiguinhas, paciência. Por que assim tratais vossa companheira?
Contai-me o que fez. Eu julgarei com consciência. 
Conta-o tu, formiguinha'. 
A formiga, meio morta, diz muito tristemente: 'Eu vi as estrelas'.
'Que são as estrelas', dizem as formiguinhas inquietas. 
E o caracol pergunta, pensativo: 'Estrelas?' 
'Sim' - repete a formiga-, 'vi as estrelas, 
subi na árvore mais alta que existe na alameda 
e vi milhares de olhos dentro de minhas trevas.'
E o caracol pergunta: 'Mas o que são as estrelas?' 
'São luzes que levamos sobre nossa cabeça'. 'Nós não as vemos', as formigas comentam.
E o caracol: 'Minha vista só alcança as ervas'. 
E as formigas exclamam, movendo as suas antenas: 
'Matar-te-emos, és perguiçosa e perversa. 
O trabalho é a tua lei'. 
'Eu vi as estrelas', diz a formiga ferida.
E o caracol sentencia: 'Deixai-a ir, continuai as vossas tarefas. 
É possível que, muito em breve, já rendida, morra'.

Pelo ar dulcífico, cruzou uma abelha.
A formiga, agonizando,cheira a tarde imensa,e diz: 'É a que vem
levar-me a uma estrela'.
As demais formiguinhas fogem ao vê-la morta.

O caracol suspira e aturdido se afasta cheio de confusão 
por causa do eterno. 'A senda não tem fim' - exclama.
'Talvez às estrelas se chegue por aqui.
Mas minha grande fraqueza me impedirá de chegar.
Não pensemos mais nelas.' 
Tudo estava brumoso de sol débil e névoa. Campanários longínquos 
chamam gente à igreja,e o caracol, pacífico burguês da vereda, 

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